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A RETÓRICA DA GUERRA VERSUS A CIÊNCIA NO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA – Alfredo Wagner Berno de Almeida


Exatamente uma semana após a MARCHA VIRTUAL PELA CIENCIA, promovida pela SBPC em 07 de maio, estamos assistindo a um deslocamento radical dos estratagemas de poder face ao enfrentamento da pandemia e notadamente face ao conhecimento científico. As ações governamentais decorrentes inclinam-se para iniciativas de biosegurança num combate frontal à ciência, através de uma tentativa de debilitar o conhecimento médico, militarizando o Ministério da Saúde e a própria saúde pública ao sancionar protocolo de tratamento da COVID-19, que amplia o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, não obstante evidências científicas e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) flagrantemente contrárias.

1-Pandemia: uma questão de “segurança nacional”?

Desde o dia 14 de maio com o artigo intitulado “Limites e Responsabilidades” de autoria do Vice-presidente da República, publicado nesta data em O Estado de São Paulo, verifica-se que ganhou corpo a ênfase numa retórica alusiva à “guerra” e a condutas de inspiração puramente militar, insinuando que a pandemia poderia vir a ser uma “questão de segurança”, de segurança nacional, sob uma imaginada situação de “caos”.

A esta altura está claro que a pandemia de COVID-19 não é só uma questão de saúde, por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança. (…) Para esse mal nenhum país do mundo tem solução imediata, cada qual procura enfrenta-lo de acordo com sua realidade. Mas nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos e pode ser resumido em quatro pontos”. (Mourão, A.H.M. – O Estado de São Paulo, 14/05/2020 pag. A2, coluna “Espaço Aberto”).

Fazendo coro com interpretações catastrofistas o autor descreve fatores que podem levar à passagem da pandemia a um problema de segurança nacional. Fala inicialmente em “polarização”, “em que se radicaliza por tudo”. Sublinha depois a “degradação do conhecimento politico por quem deveria usá-lo de maneira responsável, governadores, magistrados e legisladores que esquecem que o Brasil não é uma confederação, mas uma federação…” (ibid). Além destes atribui também à imprensa e até a ex-ocupantes de cargos públicos a responsabilidade pelos descaminhos do país nesta pandemia. Exime desta maneira o poder executivo, num tom defensivo e de certo modo vitimista, que o leva ao terceiro ponto, exatamente ao que designa como “usurpação das prerrogativas do poder executivo”, como se este poder estivesse passivo, inerte ou imobilizado, apenas sofrendo a ação dos demais poderes (judiciário e legislativo) que idealmente o constrangem, usurpam e impedem sua intervenção. Ora, o chamado “negacionismo” inerente às ações contrárias ao “isolamento social”, consiste numa forma incisiva de intervenção na sociedade, isto é, numa política governamental que nega pública e explicitamente as medidas de distanciamento social, bem como as medidas de higiene e de cuidados corporais. Finalmente o texto incide, de maneira implícita, no menosprezo pelas informações técnicas, que assinalam a elevação abrupta do desmatamento na Amazônia, nos últimos meses. O autor mais acentua danos provocados à imagem do País no exterior sem sequer recuperar as polêmicas do ano anterior que levaram a atos administrativos do poder executivo com finalidade explícita de negar os dados sobre desmatamento, criteriosamente produzidos pelo INPE, desdenhando séries estatísticas e o monitoramento de imagens de satélites por décadas consecutivas.

2-Fabricação da guerra

Na mesma data em pronunciamento na FIESP o chefe do executivo teve sua alocução assim registrada, no mesmo O Estado de São Paulo, do dia seguinte, 15 de maio:

(…) o presidente Bolsonaro informou aos brasileiros que há uma “guerra” em curso, em referência ao isolamento social determinado por autoridades estaduais e municipais.” (cf. Ricardo Della Coleta e Bernardo Caram- “É guerra, tem que jogar pesado com governadores, diz Bolsonaro à FIESP”. Folha de São Paulo, 15/5/2020).

Outro artigo na Folha de São Paulo do mesmo dia alertou: “Bolsonaro fabrica uma guerra” (Cf. Bruno Boghossian, 15/5/2020). O presidente teria feito uma projeção catastrofista, caso sejam mantidas medidas de “isolamento social”. Projeta condições de possibilidade para o “caos”, “saques” e “desobediência civil”, tornando os efetivos militares “insuficientes” para atuar em uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (cf. Jussara Soares e Emilly Behnke- “Bolsonaro pede “jogo pesado” contra Doria”. O Estado de São Paulo, 19 de maio de 2020). Enfatizando a ”desordem” tal interpretação prepara o terreno para uma intervenção autoritária com medidas de “segurança” supostamente ordenadoras. O espectro da guerra legitimaria possíveis medidas de exceção. Ao mesmo tempo, num ato que lança dúvidas sobre um propósito velado de isentar-se de responsabilidades e de vencer resistências internas de gestores que temem aplicar seu receituário, o Presidente emitiu a Medida Provisória 966, que protege agentes públicos de responsabilização por decisões e atos tomados durante a pandemia.

3-Militarização da Saúde.

À retórica de guerra estão sendo incorporadas aos atos governamentais decisões que propiciam uma militarização, verificada notadamente no Ministério da Saúde, cujos quadros funcionais passam a ter, em pelo menos treze posições burocráticas, servidores militares, e o próprio ministro, com interinidade indefinida, é um general sem formação médica. Não bastasse esta tendência à militarização da saúde, como se a saúde militar, com seus hospitais, corpo médico específico e ambulatórios de campanha, fosse similar à saúde pública, os esforços do poder executivo contrários ao “isolamento social” levaram o presidente de maneira concomitante a sancionar, através de “protocolo de tratamento da COVID-19”, em 20 de maio, a possibilidade de uso de cloroquina e de hidroxicloroquina para pacientes com sintomas leves de Covid-19, contrariando resultados de pesquisas científicas e a própria OMS, segundo seu diretor executivo Michael Ryan, que recomenda, no caso da Covid-19, que tais medicamentos sejam usados apenas em experimentos clínicos . O Presidente assim procedeu após afastar consecutivamente, em menos de um mês, dois médicos que dirigiam o Ministério da Saúde e se atinham a critérios científicos. Estes atos do governo tem sido acompanhados, paradoxalmente, de um apelo oficioso à “pacificação”, tal como explicitamente mencionado na fala demissionária da Secretária de Cultura, em 19 de maio, como se o país, porventura, já estivesse de fato numa situação de guerra. Mediante constatação desta ordem pode-se imaginar que a perspectiva belicista e de nítida inspiração autoritária estaria perigosamente se expandindo nos meandros do poder executivo, utilizando o combate à pandemia como pretexto e alimentando teorias conspiratórias e um suposto catastrofismo latente. Como imaginar que o poder executivo está renunciando ao centro científico de controle do combate à pandemia para torná-lo um centro administrativo operacionalizado por servidores públicos de formação militar, sem critérios de competência e saber das ciências médicas? Como interpretar de maneira acurada esta recusa de liberada de ações baseadas nas ciências médicas, finalidade precípua do Ministério da Saúde? Historicamente, isto não consiste numa novidade, senão num capítulo abordado pelo conceito de biopolítica, que se ocupa do controle da gestão da saúde, da higiene e também da sexualidade, e tem como ilustração mais conhecida a situação da Alemanha, a partir de 1933, quando a medicina tornou-se um setor focalizado pelos atos do nacional-socialismo em sua escalada autoritária.

4- “Batalha contra a ciência” e contra a vida.

O presidente da Academia Brasileira de Ciências, em entrevista à Globonews, no mesmo dia 15 de maio, expressou uma acentuada preocupação com esta inclinação anticientífica do poder politico, produzindo uma interpretação acurada deste momento. Segundo o presidente da ABL:

Está havendo uma batalha contra a ciência. (…) e não adianta trocar ministros. Enquanto os ministros estiverem alinhados com o conhecimento científico eles serão substituídos. (…)”.

Recuperando episódios da história da ciência ele acena para um futuro relativamente promissor, mas de uma maneira trágica, enunciando o temor de um genocídio: “A ciência triunfa, mas o que me preocupa é o seguinte: a quantas mortes vamos ter que assistir antes que impere a lucidez neste País?”. O presidente da ABL, levando em conta a banalização da retórica belicista do poder, chama a atenção para a “batalha contra a ciência”, que em verdade é uma batalha contra a vida.//

Notícia cadastrada em: 27/08/2020 16:30
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