4 maio, 2020 • 19:18
Fonte: esquerdaonline.com.br
Por: Dorinete Serejo, coordenadora do MABE, quilombola da comunidade de Canelatiua
O município de Alcântara no Estado do Maranhão, tem mais de 200 comunidades quilombolas, distribuídas em três territórios, que estão sob controle de descendentes de negros que foram escravizados desde o século XVIII, que aí residem e trabalham por muitas gerações, contrariando a tese de que Alcântara é um vazio demográfico. São os Territórios de Santa Tereza, Ilha do Cajual e Território Étnico Quilombola de Alcântara. Só esse último é integrado por 159 comunidades que desde 2002 se autodefinem como comunidades remanescentes de quilombos nos termos d o artigo 68 do ADCT. Além disso, o território dessas comunidades quilombolas sofreu dois decretos de desapropriação de terras. O primeiro deles ocorreu em 1980 e se deu por um decreto estadual, durante a gestão, do então governador, João Castelo, desapropriando 52 mil hectares do território. E o segundo decreto de desapropriação ocorreu no ano de 1991 através de um decreto federal, do então Presidente da República, Fernando Collor de Melo, desapropriando mais 10 mil hectares e totalizando, assim, 62 mil hectares do território de um município que possui 114 mil hectares. Ou seja, este segundo decreto desapropriou mais da metade da área do município para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Durante 40 anos, desde o primeiro decreto de desapropriação, ou mais precisamente desde 1º de março de 1983, data da inauguração do CLA, este centro de lançamento de foguetes espaciais tem, sob seu domínio, pouco mais de 8 mil hectares. O atual governo federal quer não só modificar as atribuições e competências deste centro de lançamento, como pretende avançar em mais de 12 mil hectares de terras, aproximando de 22 mil hectares, praticamente todo litoral do município.
Desde então as famílias passaram a viver sob constantes ameaças de deslocamentos compulsórios das terras que ocupam de modo livre e com inteiro controle sobre os usos dos recursos naturais para que pudesse ser ampliado o referido centro de lançamento. Ameaças que se concretizaram em 1986 e 1987 quando 312 famílias foram violentamente tiradas das suas comunidades originárias próximas do mar e reassentadas nas denominadas “agrovilas”, localizadas mais ao centro do município em terras impróprias para o tipo e forma de produção agrícola praticada pelas famílias. Distantes do mar, as famílias de quilombolas foram constrangidas a modificar seus hábitos alimentares. A dificuldade de viver sem o pescado tem gerado um certo desconforto entre as famílias de quilombolas que foram deslocadas para as agrovilas e comunidades quilombolas já existentes no entorno.
Passado esse primeiro momento, mais deslocamentos estavam por acontecer para que se consolidassem as quatro fases de implantação do projeto aeroespacial brasileiro, como foram pensadas desde o início. Com os problemas gerados a partir das remoções de famílias, dificuldades de adaptação, e o abandono sofrido por essas comunidades, as novas remoções passam a ser questionadas, ainda mais, por organizações sociais, a exemplo de associações de moradores, organizações sindicais e movimentos sociais, e pelos próprios quilombolas, o que levou, em maio de 1999, à organização no município do primeiro seminário que se propôs a debater os problemas causados pelo Centro de Lançamento de Alcântara. Este Seminário de 1999, como hoje é conhecido, permitiu às famílias, que se consideram atingidas por esse empreendimento, colocarem, publicamente e perante autoridades responsáveis por esse centro de lançamento, várias demandas. Além disso, através dele foi possível impedir que novas remoções de comunidades fossem realizadas, remoções essas que estavam previstas para acontecer.
Algumas foram as tentativas de o Brasil entrar no mercado mundial de satélites. Infelizmente esse desejo parece ter tido fim quando ocorreu um grave acidente em agosto de 2003 que destruiu a plataforma de lançamento e matou 21 técnicos civis que trabalhavam na missão. Com isso, o Brasil passa a concentrar seus esforços no aluguel da base de Alcântara, fato que vinha sendo pensado um pouco antes da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Mas FHC pretendeu firmar um acordo com os Estados Unidos passando a cessão de uso da base de lançamento de foguetes para os americanos. Esse acordo ainda previa salvaguardas tecnológicas aos americanos de forma que não seria possível qualquer tipo de troca de conhecimento em tecnologias aeroespaciais para os cientistas brasileiros e em benefício do Programa Espacial Brasileiro. E nesse sentido, o acordo que se pretendia firmar com os Estados Unidos no início dos anos 2000 tenderia a transformar o CLA em uma base militar americana. A mobilização dos movimentos sociais de Alcântara foi bastante intensa e consistente nesse período de forma que conseguimos, com muito esforço, que este acordo não fosse aprovado.
Mas logo em seguida veio o acordo com a Ucrânia, que teve como fruto a criação da binacional Alcântara Cyclone Space para execução do projeto de lançamento Cyclone-4. Mais um projeto que não deu certo e somente trouxe mais degradação ao meio ambiente, desperdício de dinheiro e criação de medo e insegurança para as comunidades que mais uma vez se viram ameaçadas de deslocamento forçado.
Eis que ressurge das cinzas o tão famigerado acordo com os Estados Unidos. Desta vez no momento muito pior, onde a política brasileira parece estar voltada para o extermínio das populações negras, dos quilombolas, dos indígenas, dentre outros povos e comunidades que se autodefinem como tradicionais, nos termos dos dispositivos constitucionais brasileiros e das convenções internacionais.
Em março de 2019, o Brasil assina o acordo com Estados Unidos e a partir daí começa a nossa luta para conhecer o referido acordo e pedir explicações às autoridades competentes, já que há um conjunto de direitos constitucionais que reconhecem os direitos territoriais das comunidades quilombolas de Alcântara. Nada nos foi oficialmente esclarecido. Não sabemos, até o presente, se há previsão para novos deslocamentos de famílias já que, por inúmeras vezes, nos foi dito por autoridades competentes não ser necessário em termos estritamente técnicos, a exemplo da base espacial de Kourou, na Guiana Francesa. Muitas audiências públicas têm sido realizadas e o nosso entendimento de que há uma forte ameaça às famílias de quilombolas perderem seu território, oficialmente reconhecido pelo governo federal, têm mobilizado os movimentos sociais organizados de Alcântara e muitas organizações governamentais e internacionais, como a Comissão Interamericana de Diretos Humanos. A despeito disso, o acordo foi aprovado na Câmara Federal. Não podemos esquecer da pressão feita pelo governo do Estado do Maranhão para isto. Flávio Dino foi fiador e a bancada maranhense deve mais essa para o povo de Alcântara, com exceção do deputado Bira do Pindaré que votou contra a assinatura do acordo. No Senado Federal, nem conversa houve, no mesmo dia foi votado sem debate e imagine ouvir as comunidades de Alcântara.
Em meio à pandemia da Covid-19 o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) então comandado pelo General Augusto Heleno publicou a Resolução nº 11, em 26/03/2020. Neste documento finalmente está dita, com todas as letras, a intenção de remover cerca de 30 comunidades quilombolas e aproximadamente 800 famílias que ocupam uma área de 12.645 hectares do litoral. Com a aprovação do acordo já esperávamos algo assim. O que não imaginávamos era a tamanha crueldade de fazerem isso no momento como este, onde estamos impossibilitados de nos encontrar e organizar nossas reuniões. O povo está fragilizado devido à pandemia. Parece que estão tentando nos exterminar. Mas seguimos firmes e mesmo diante de toda dificuldade não vamos abrir mão do nosso território. Acionamos Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF) dentre outras. Destas ações resultou um compromisso firmado entre MPF, GSI e Ministério da Defesa no dia 02 de abril, que não haverá remoção enquanto durar a pandemia.
Nós, comunidades quilombolas de Alcântara, não vamos abrir mão de nosso território. Exigimos a titulação das terras conforme os termos dos dispositivos constitucionais. Essa é a nossa segurança jurídica. Durante todo esse tempo, o CLA funcionou sem EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental). O Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e de acordo com esta convenção nós temos o direito de ser consultados. Esta consulta de ser prévia livre e informada. Deste modo, qualquer empreendimento que venha a se instalar em nosso território precisa cumprir esta convenção, e isto nunca aconteceu. Esta convenção no assegura o direito de permanência em nosso território e só sair mediante consentimento. A remoção das comunidades influenciará diretamente a vida das famílias das agrovilas, pois é desta região que sai grande parte do pescado consumido por estas famílias das agrovilas e também para a cidade de Alcântara.
#ALCÂNTARAÉQUILOMBOLA
* Membro da comunidade Quilombola de Canelatiua e coordenadora do Movimento MABE (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara)