1 ago, 2019 • 11:44
Mediante o recrudescimento do poder punitivo, constata-se o crescimento vertiginoso do Estado policial e do número de pessoas presas, que já ultrapassa 800 mil em 2019 e eleva, desafortunadamente, o Brasil ao terceiro lugar no ranking dos países que mais privam as pessoas de liberdade. Tal circunstância vai de encontro ao aumento crescente do número de indígenas em áreas urbanas periféricas e em ações de ocupação de terrenos baldios, notadamente em Manaus (AM). Esta tendência demográfica propicia condições de possibilidade para abordagens policiais, acusações criminais e processos penais, ou seja, um contato frequente e tenso de indígenas com os aparatos de controle e punição.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atento a este problema, editou e publicou a Resolução nº 287 de 25 de junho de 2019, que “estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário”.
Para tanto, o pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, Felipe Pereira Jucá, foi procurado pelo Programa Justiça Presente (parceria entre o Conselho Nacional de Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento com vistas a enfrentar o estado de crise do sistema penal). A contribuição se deu na medida em que o referido advogado criminalista e antropólogo realizou pesquisa relacionada à justiça criminal aplicada a indígenas em São Gabriel da Cachoeira, município onde vivem cerca de vinte e três povos e seus membros sofrem reiteradas violações de direitos face às ações das agências punitivas do estado brasileiro.
Considerando as peculiaridades de membros de povos indígenas a serem respeitadas, a Resolução aponta a necessidade de se realizar: identificação da pessoa de acordo com sua etnia autodeclarada, confecção de laudo antropológico, oferecimento de intérprete durante o procedimento penal, comunicação da prisão à Funai em 48 horas, reconhecimento das práticas de resolução de conflito próprias às comunidades, povos e pessoas indígenas, dentre outras garantias.
A aludida Resolução entrará em vigor a partir de 25 de setembro de 2019, pois consignou vacatio legis de 90 dias. A íntegra do texto normativo segue abaixo. Pode ser encontrada também em: www.cnj.jus.br
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais e regimentais;
CONSIDERANDO que cabe ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e a normatização do Poder Judiciário e dos atos praticados por seus órgãos (art. 103-B, § 4º, I, II e III, da CF);
CONSIDERANDO que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas reconhece o direito desses de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais (arts. 5º e 34);
CONSIDERANDO que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece que os Estados devem adotar medidas eficazes para garantir a proteção dos direitos dos povos indígenas, inclusive proporcionando serviços de interpretação e outros meios adequados (art. 13.2);
CONSIDERANDO o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições das populações indígenas (art. 231 da CF);
CONSIDERANDO que o relatório da missão da Relatora Especial sobre os povos indígenas da ONU no Brasil, de 2016, recomendou ao Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo que considerem, com urgência, e em colaboração com os povos indígenas, a eliminação das barreiras que os impedem de realizarem seu direito à justiça;
CONSIDERANDO as regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras – Regras de Bangkok (Regras 54 e 55);
CONSIDERANDO a excepcionalidade do encarceramento indígena nos termos da Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais (arts. 8º, 9º e 10) e dos termos da Organização Internacional do Trabalho – OIT (art. 10.2);
CONSIDERANDO o disposto no Estatuto do Índio (arts. 56 e 57 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973);
CONSIDERANDO a previsão de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e a disciplina do regime de cumprimento de pena privativa de liberdade (Lei nº 13.769/2018);
CONSIDERANDO a decisão proferida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 143.641/SP;
CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do CNJ, no Procedimento de Ato nº 0003880-63.2019.2.00.0000, 293ª Sessão Ordinária, realizada em 25 de junho de 2019;
RESOLVE:
Art. 1º Estabelecer procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário.
Art. 2º Os procedimentos desta Resolução serão aplicados a todas as pessoas que se identifiquem como indígenas, brasileiros ou não, falantes tanto da língua portuguesa quanto de línguas nativas, independentemente do local de moradia, em contexto urbano, acampamentos, assentamentos, áreas de retomada, terras indígenas regularizadas e em diferentes etapas de regularização fundiária.
Art. 3º O reconhecimento da pessoa como indígena se dará por meio da autodeclaração, que poderá ser manifestada em qualquer fase do processo criminal ou na audiência de custódia.
§ 1º Diante de indícios ou informações de que a pessoa trazida a juízo seja indígena, a autoridade judicial deverá cientificá-la da possibilidade de autodeclaração, e informá-la das garantias decorrentes dessa condição, previstas nesta Resolução.
§ 2º Em caso de autodeclaração como indígena, a autoridade judicial deverá indagar acerca da etnia, da língua falada e do grau de conhecimento da língua portuguesa.
§ 3º Diante da identificação de pessoa indígena prevista neste artigo, as cópias dos autos do processo deverão ser encaminhadas à regional da Fundação Nacional do Índio – Funai mais próxima em até 48 (quarenta e oito) horas.
Art. 4º A identificação da pessoa como indígena, bem como informações acerca de sua etnia e língua por ela falada, deverão constar no registro de todos os atos processuais.
§ 1º Os tribunais deverão garantir que a informação sobre identidade indígena e etnia, trazida em qualquer momento do processo, conste dos sistemas informatizados do Poder Judiciário.
§ 2º Essas informações deverão constar especialmente da ata de audiência de custódia, em consonância com o art. 7º da Resolução CNJ nº 213/2015.
Art. 5º A autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte:
I – se a língua falada não for a portuguesa;
II – se houver dúvida sobre o domínio e entendimento do vernáculo, inclusive em relação ao significado dos atos processuais e às manifestações da pessoa indígena;
III – mediante solicitação da defesa ou da Funai; ou
IV – a pedido de pessoa interessada.
Art. 6º Ao receber denúncia ou queixa em desfavor de pessoa indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada, e deverá conter, no mínimo:
I – a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada;
II – as circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas da pessoa acusada;
III – os usos, os costumes e as tradições da comunidade indígena a qual se vincula;
IV – o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros; e
V – outras informações que julgar pertinentes para a elucidação dos fatos. Parágrafo único. O laudo pericial será elaborado por antropólogo, cientista social ou outro profissional designado pelo juízo com conhecimento específico na temática.
Art. 7º A responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia.
Parágrafo único. A autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comunidade indígena, nos termos do art. 57 da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio).
Art. 8º Quando da imposição de qualquer medida cautelar alternativa à prisão, a autoridade judicial deverá adaptá-la às condições e aos prazos que sejam compatíveis com os costumes, local de residência e tradições da pessoa indígena, observando o Protocolo I da Resolução CNJ nº 213/2015.
Art. 9º Excepcionalmente, não sendo o caso do art. 7º, quando da definição da pena e do regime de cumprimento a serem impostos à pessoa indígena, a autoridade judicial deverá considerar as características culturais, sociais e econômicas, suas declarações e a perícia antropológica, de modo a:
I – aplicar penas restritivas de direitos adaptadas às condições e prazos compatíveis com os costumes, local de residência e tradições da pessoa indígena;
II – considerar a conversão da multa pecuniária em prestação de serviços à comunidade, nos termos previstos em lei; e
III – determinar o cumprimento da prestação de serviços à comunidade, sempre que possível e mediante consulta prévia, em comunidade indígena.
Art. 10. Não havendo condições para aplicação do disposto nos artigos 7º e 9º, a autoridade judicial deverá aplicar, sempre que possível e mediante consulta à comunidade indígena, o regime especial de semiliberdade previsto no art. 56 da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio), para condenação a penas de reclusão e de detenção.
Parágrafo único. Para o cumprimento do estabelecido no caput, a autoridade judicial poderá buscar articulação com as autoridades comunitárias indígenas da Comarca ou Seção Judiciária, bem como estabelecer parceria com a Funai ou outras instituições, com vistas à qualificação de fluxos e procedimentos.
Art. 11. Para fins de determinação de prisão domiciliar a pessoa indígena, considerar-se-á como domicílio o território ou circunscrição geográfica de comunidade indígena, quando compatível e mediante consulta prévia.
Art. 12. No caso de aplicação concomitante de medidas alternativas à prisão previstas no art. 318-B do Código de Processo Penal, deverá ser avaliada a forma adequada de cumprimento de acordo com as especificidades culturais.
Art. 13. O tratamento penal às mulheres indígenas considerará que:
I – para fins do disposto no art. 318-A do Código de Processo Penal, a prisão domiciliar imposta à mulher indígena mãe, gestante, ou responsável por crianças ou pessoa com deficiência, será cumprida na comunidade; e
II – o acompanhamento da execução das mulheres indígenas beneficiadas pela progressão de regime, nos termos dos arts. 72 e 112 da Lei de Execução Penal, será realizado em conjunto com a comunidade.
Art. 14. Nos estabelecimentos penais onde houver pessoas indígenas privadas de liberdade, o juízo de execução penal, no exercício de sua competência de fiscalização, zelará que seja garantida à pessoa indígena assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, prestada conforme sua especificidade cultural, devendo levar em consideração, especialmente:
I – Para a realização de visitas sociais:
a) as formas de parentesco reconhecidas pela etnia a que pertence a pessoa indígena presa;
b) visitas em dias diferenciados, considerando os costumes indígenas; e
c) o respeito à cultura dos visitantes da respectiva comunidade.
II – Para a alimentação em conformidade com os costumes alimentares da respectiva comunidade indígena:
a) o fornecimento regular pela administração prisional; e
b) o acesso de alimentação vinda do meio externo, com seus próprios recursos, de suas famílias, comunidades ou instituições indigenistas.
III – Para a assistência à saúde: os parâmetros nacionais da política para atenção à saúde dos povos indígenas;
IV – Para a assistência religiosa: o acesso de representante qualificado da respectiva religião indígena, inclusive em dias diferenciados;
V – Para o trabalho: o respeito à cultura e aos costumes indígenas; e
VI – Para a educação e a remição por leitura: o respeito ao idioma da pessoa indígena.
Art. 15. Os tribunais deverão manter cadastro de intérpretes especializados nas línguas faladas pelas etnias características da região, bem como de peritos antropólogos.
Parágrafo único. Para o cumprimento do disposto no caput, os tribunais poderão promover parcerias com órgãos e entidades públicas e particulares com atuação junto a povos indígenas, de modo a credenciar profissionais que possam intervir em feitos envolvendo indígenas nos termos desta Resolução, preferencialmente com apoio da Funai.
Art. 16. Para o cumprimento do disposto nesta Resolução, os tribunais, em colaboração com as Escolas de Magistratura, poderão promover cursos destinados à permanente qualificação e atualização funcional dos magistrados e serventuários que atuam nas Varas Criminais, Juizados Especiais Criminais e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Varas de Execução Penal, notadamente nas Comarcas e Seções Judiciárias com maior população indígena, em colaboração com a Funai, instituições de ensino superior ou outras organizações especializadas.
Art. 17. O Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça elaborará, em noventa dias, Manual voltado à orientação dos tribunais e magistrados quanto à implementação das medidas previstas nesta Resolução.
Art. 18. Esta Resolução entra em vigor noventa dias após sua publicação.
Ministro DIAS TOFFOLI
Presidente